Esta foi a disciplina ETNOCENOLOGIA, realizada no 5º semestre do curso de Teatro, ministrada pelo Dr. Miguel Santa Brígida.
Falei do Auto do Círio, pois este ano de 2012 vivi o auto, participei e me emocionei bastante. Observei a manifestação pelas lentes etnocenológicas e resultou neste artigo. Bom, super feliz com o EXCELENTE que recebi, dividindo com vocês um pouquinho do que produzi academicamente.
Maira Tupinambá
Introdução
Para um melhor entendimento resolvi agrupar os conceitos
de Armindo Bião, presentes no texto “Um léxico para a etnocenologia” tomando
como exemplo o auto do círio, nossa expressão maior da fé artística em Belém do
Pará.
A proposta é,
assimilar os conceitos de Bião genialmente organizados em seu texto, com
exemplos observados durante o auto do círio. Assim, inicialmente, no âmbito da
epistemologia, terremos as 12 palavras listadas por Armindo, além de definidas,
agora exemplificadas com imagens e acontecimentos tomados no auto, objetivando
uma melhor compreensão dos conceitos de etnocenologia.
Teatralidade
“Palavra dicionarizada em língua portuguesa
(HOUAISS,2001, p. 2682; AURÉLIO, 1986, p. 1655), originada do vocábulo grego
que se constituiu para designar a ação e o espaço organizados para o olhar, que
compreendo como uma categoria reconhecível em todas as interações humanas. De
fato, toda interação humana ocorre porque seus participantes organizam suas
ações e se situam no espaço em função do olhar do outro.” .”(Bião, um léxico para a etnocenologia
–pág 34 e 35)
Percebi em todas as interações no auto, cujas pessoas envolvidas
agem, simultaneamente, como atores e espectadores da interação. A consciência
reflexiva de que cada um aí presente age e reage em função do outro. isto
ocorre de modo claro e difuso. Trata-se sim de um hábito cultural enraizado – uma
espécie de segunda natureza, individual e coletiva – amplamente praticado pela
maioria absoluta dos indivíduos de cada sociedade, de um modo inerente a cada
cultura, que codifica suas interações ordinárias e transmite seus códigos para
se manter viva e coesa. Portanto o auto do círio possui teatralidade como
característica etnocenológica, uma vez que seus participantes e espectadores
demonstram as características supra citadas.
Espetacularidade
Bião compreende como uma categoria também reconhecível em
algumas das interações humanas. De fato, em algumas interações humanas – não em
todas – percebe-se a organização de ações e do espaço em função de atrair-se e
prender-se a atenção e o olhar de parte das pessoas envolvidas.
Até aqui é clara a constatação desta característica no
auto do círio, prossigamos.
Aí, e então, de modo – em geral – menos banal e
cotidiano, que no caso da teatralidade, podemos perceber uma distinção entre
(mais uma vez, de modo metafórico) atores e espectadores. Aqui e agora, a
consciência reflexiva sobre essa distinção é maior e – geralmente – mais
visível e clara. Trata-se de uma forma habitual, ou eventual, inerente a cada
cultura, que a codifica e transmite, de manter uma espécie de respiração
coletiva mais extraordinária, ainda que para parte das pessoas envolvidas possa
se tratar de um hábito cotidiano. Assim como a teatralidade, a
“espetacularidade” contribui para a coesão e a manutenção viva da cultura.
Mais uma vez o auto do círio possui estas descrições
quando percebemos a interferência na rotina das pessoas de modo a levá-las a
assistir o acontecimento, tirando de suas rotinas, direcionando grande parte da
população à concentração na cidade velha, como espectadores sedentos por
demonstrações da arte em suas mais variadas linguagens, ou simplesmente no
desejo de ver a santa subir aos céus levada por balões.
.
Estados de consciência
“Esta expressão é parte do jargão das ciências do homem
interessadas nos rituais, que provocam a alteração do modo mais habitual de
ter-se consciência do mundo e de si próprio. Daí falar se de estados
modificados (LAPASSADE, 1987) ou alterados (BOURGUIGNON, 1973) de consciência,
frequentemente associados, por exemplo, ao transe, ao êxtase e à possessão” (BIÃO, 1990, p. 132- 142).
É notório o estado em que as pessoas que acompanham o
auto do círio ficam. Neste caso, o êxtase acontece para a plateia e para os atores
participantes.
“Mais contemporaneamente, a relação entre artes e formas
de espetáculo e estados modificados de consciência tem sido ressaltada,
levando-nos a sugerir que o treinamento corporal e mental de dançarinos e
atores, por exemplo, gera, não apenas estados modificados de corpo –
relembrando as reflexões de Marcel Mauss (1985) sobre as técnicas de corpo –
mas também gera estados modificados de consciência”. (Bião, Um léxico para a
Etnocenologia –pág 36)
Estados de corpo
Expressão que Bião utiliza em associação à anterior para referir-se
por um lado à indissociabilidade, tão cara à etnocenologia, entre corpo e
consciência e por outro para reportar-me às artes do espetáculo que se
sustentam em boa medida na prática e exercício de alteração dos estados de
corpo habituais do dia a dia.
Identifica-se esta característica, na atuação individual
dos atores participantes do auto principalmente quando trazem às ruas
personagens lendárias, mitos e orixás. Notam-se Técnicas “extracotidianas” de
corpo.
No entanto, do ponto de vista léxico, Bião considera que
a expressão, antropologia teatral, reforça o etnocentrismo europeu, que
privilegia o teatro em detrimento de outras artes e formas espetaculares.
Bião também prefere as expressões: estados de corpo e
estados de consciência para tratar dos objetos da etnocenologia:
“E certo que esses estados, dinamicamente construídos e
mantidos apenas temporariamente, quando nos referimos à vida da arte, são
construídos com base em práticas, comportamentos e técnicas.”(Bião, um léxico
para a etnocenologia –pág 37)
Isto confirma a exemplificação sobre os atores que
interpretam os orixás. É como se as pessoas realmente acreditassem que mães e
pais de santo estão desfilando, tamanha a modificação corpórea baseada em
pesquisas técnicas feitas pelos próprios atores e a emoção sentida na hora da
representação criando movimentos e expressões geradas e induzidas a partir da
atmosfera de energia fornecida pelo auto.
Transculturação
“O conceito sugerido por Fernando Ortiz (1973) e comentado
por Rafael Mandressi (1999) aproxima-se decerto de algumas possíveis leituras
de outros conceitos correlatos mais antigos. Mas sua proposição, cunhando um
novo termo, reafirma o fenômeno do contato cultural como gerador de novas
formas de cultura, distintas das que lhes deram origem, o que remete ao desejo
de identificação de suas matrizes culturais(...)” (Bião, Um léxico para a Etnocenologia
–pág 37)
O auto do círio é uma transculturação. Ele gera a cultura
do preparativo para o auto. Vamos considerar também que ele se torna objeto de
estudo para a arte local, tamanha sua variedade nas linguagens, sua riqueza de
acontecimentos que partem da atmosfera de energia que só acontece no mês do
círio.
Matrizes estéticas
“Essa expressão é mais uma noção teórica “mole” que um
conceito “rígido” (MAFFESOLI, 1985, p. 51, 52 et seq., 63), considerando-se
que, no âmbito geral da cultura, assim como no campo mais específico da
estética, pode-se sempre buscar compreender um fenômeno contemporâneo a partir
do esforço de identificação de sua filiação histórica e de seu parentesco atual
com outros fenômenos. A utilização dessa expressão – matrizes estéticas, sempre
no plural, possui, do ponto de vista retórico, uma consciente proposição
paradoxal, posto que a palavra matriz remete à ideia de mãe, que também remete
à ideia de unicidade, quando pensada como uma e única pessoa, do gênero feminino,
que alimenta em seu próprio corpo e
assim é explicitamente geradora de outra, enquanto a palavra matrizes multiplica
esse ente, ainda que se referindo a um mesmo fenômeno – seu descendente direto(...)”
(Bião, Um léxico para a etnocenologia –pág 37-38)
Durante o auto, cada fenômeno possui simultaneamente
múltiplas matrizes, fruto que é de diversos processos de transculturação. A
isso, Bião chama de “família de formas
culturais aparentadas [...], identificadas por suas características sensoriais
e artísticas, portanto estéticas, tanto num sentido amplo, de sensibilidade, quanto
num sentido estrito, de criação e compreensão do belo” (BIÃO, 2000, p.15).
Assim, podemos falar, por exemplo, de matrizes estéticas,
a partir de referências linguísticas, religiosas, geográficas, históricas,
geo-históricas, étnicas, técnicas, temáticas, teóricas, tecnológicas etc. todas
presentes no auto.
Temos santos, caboclos, orixás, duendes, fadas, anjos.
Uma grande mistura mas que no auto fazem sentido e dialogam entre si.
Dos sujeitos
“O conjunto das noções de alteridade, identidade,
identificação (MAFFESOLI, 1988), diversidade, pluralidade e reflexividade (GARFINKEL,
1967; TURNER, 1979, p. 65; SCHÜTZ, p. 1987, p. 114 et seq.) remete à
consciência das semelhanças e diferenças entre indivíduos, grupos sociais e
sociedades, por um lado e, por outro, à capacidade humana de refletir a
realidade e sobre ela, de modo consciente, experimentando e exprimindo
sensibilidade, sensorialidade, opções de prazer, beleza, desejo e conforto.
Nesse conjunto de noções, vale ressaltar a emergência da noção de “identificação”,
como uma construção temporária, existencialista e dinâmica, contraposta à de
“identidade”, como uma categoria definitiva, essencialista e estática, que se
encontraria em crise na contemporaneidade.” (BIÃO, Um léxico para a
etnocenologia –pág 38)
Observamos no trajeto do auto todas estas categorias
citadas abaixo, presente tanto nos atores participantes quanto na plateia que
acompanha.
Alteridade
A categoria de
reconhecimento pelo sujeito de um objeto humano (no caso da etnocenologia) distinto
de si próprio.
Identidade
A categoria de
reconhecimento da especificidade do sujeito em relação à alteridade.
Identificação
A categoria de
momentâneo reconhecimento do sujeito, em parte ou no todo, na alteridade.
Diversidade
A categoria que
permite ao sujeito reconhecer a coexistência das diferenças humanas.
Pluralidade
A categoria que, como
à anterior, dá ao sujeito condições de reconhecer a coexistência das –
reafirme-se – múltiplas e variadas diferenças humanas.
Reflexividade
A categoria referente
ao sujeito que dá conta de sua capacidade de pensamento e teorização
(reflexão), espelhando as semelhanças e diferenças reconhecidas em sua relação
com os objetos, suas identidades e identificações.
Conclusão
Desde 1993, o Auto do Círio anima as ruas do Centro
Histórico de Belém durante os festejos do Círio de Nazaré. Este ano, o evento
trouxe o tema “O Corpo Humano dos Artistas de Nazaré” e na sexta-feira, 12 de
outubro, diversos artistas locais como Fafá de Belém, Lia Sophia, Grupo Folclórico
Kuarup da Serra do Carajás, Orquestra de Violoncelistas da Amazônia, Carlos
Gutierrez e Dominguinhos do Estácio - considerado o padrinho do Auto –
apresentaram um show para o público presente.
O Auto do Círio para mim representa a cultura paraense em
seu esplendor artístico. É o carnaval devoto a Nossa Senhora. O teatro de rua
traz uma emoção constante para quem participa.
Os tambores das escolas de samba rufam com o som dos
atabaques. Asas brancas de anjos confundem-se com o colorido dos carrinhos de
refrigerante. Atores e atrizes nascem, a cada segundo, dos paralelepípedos.
O cenário é o bairro da Cidade Velha, em Belém do Pará. E
a cultura popular é a grande protagonista da festa. O maior espetáculo de rua
organizado por uma universidade do Brasil.
Faço minhas as palavras deste depoimento emocionado de
meu colega, o ator Álvaro de Souza:
“Viver o auto! Foi
assim que me senti ao estar no auto, tudo tem inicio no primeiro dia de ensaio,
quando você reencontra amigos que só vê de ano em ano, é matar a saudade, é
confraternizar, é sonhar e mais, é fazer do seu trabalho uma forma de
demonstração de fé e dançando, cantando ou perfomando homenagear nossa
Santinha. Viver o auto! é entregar-se de corpo e alma, é deixar que o seu corpo
fale por você. No auto me sinto completo, no chão descalço, o povo bem perto e
toda energia se funde num força só, e toda multidão se torna um só cortejo. O
Auto além de ter toda esse viés acadêmico também tem a função de inclusão
social, pois é, um espetáculo onde todos podem participar, enriquece e
fortalece nossa cultura nossa história. Viver o Auto, é viver a arte, a fé e a
alegria de estar numa grande família.”
E constato por fim, a exemplificação deste acontecimento
artístico como um exemplo completo para o entendimento da etnonocenologia, onde
a vivência e a experimentação de poder sentir a energia gerada durante o auto,
poder sentir as alterações no corpo, o êxtase durante o samba, a observação de
cada componente, de cada alegoria, de cada figurino, de cada interpretação, me
proporcionaram a reflexão e o gosto por estudar esta disciplina tão brasileira,
tão nossa.
Maira Tupinambá